O Latim está morto

Campanhã, 15 de dezembro de 2019

Admiro aqueles que comem gelado no inverno. Admiro quem está perto mas vive longe. Quem defende que estuda para sobreviver. Quem trabalha por fazer valer a sua sorte.

Observo os comboios que passam. Chegam, ficam, e partem. E fica a memória.

Um olhar vale muitas palavras.

– E, quando voltou, trazia dois gelados! Em janeiro, pleno inverno!

Foi este acontecimento que me fez despertar a atenção para o que me contava a minha avó. Muitas vezes me distraía com o que ela dizia, porque doce era a sua voz cheia ainda de melancolia.

– Lá fora era noite cerrada, como habitual, mas a minha viagem ganhou muito mais cor quando começámos a ler os dois, cada qual no seu idioma, e nos encostámos um ao outro. Mas o melhor foi mesmo os olhares que trocámos quando um dos passageiros, adormecido, roncava ao sabor de uma melodia ainda por inventar! Foi estupendo! O que nos rimos!

Aí entendi que voltara a falar do avô e dos loucos anos 20 em que pensara que era lésbica mas que se apaixonou por um simples rapaz estrangeiro, viajante num comboio.

– Nunca soube sequer se falava português, tivemos uma relação de companheiros de viagem, apenas. Mas foi alguém que me marcou bastante, que gostava de ter conhecido melhor. Eu estava numa fase difícil na minha vida, mas pensava que sabia o que queria. [suspiro] Depois, conheci-o.

E daí, a minha avó partiu para os subterfúgios da memória, qual sombra sem noção de tempo que não mais volta atrás. Ali a vi, perto do túnel, esperando ir além do interior da alma que vi nascer nos seus olhos, e cujo reflexo espelhava a beleza que um dia a tornou desapegada da luz estridente. Sem qualquer aviso prévio.

Sofia Rainho

Four Weddings and a Funeral

Deixa um comentário...